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BARULHOS
Esta
obra é uma reelaboração do mesmo conto, que eu havia escrito em 2003
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Thales Vianna Coutinho
Chovia
muito naquela noite em que Roger chegou numa pequena pensão, onde pretendia se hospedar por quatro dias, para participar de um importante
congresso de medicina. O local parecia ideal: limpo, arrumado, tranquilo e a proprietária tinha um semblante que lhe remetia muito a sua falecida avó.
-
Boa noite! – disse ele, enquanto secava seu chapéu – Preciso de um quarto para
quatro dias.
Com
um largo sorriso no rosto, a senhora com mãos enrugadas lhe entregou uma chave antiga e,
com toda atenção do mundo, mostrou-lhe o caminho até seu quarto. Banheiro
privativo, cama aconchegante, armário antigo e uma janela de fundos que dava
para a rua. Não tinha nenhum luxo, mas era bom o suficiente para passar aquele período.
Logo na primeira noite, Roger perdeu o sono, e assistiu a quase dois filmes na pequena TV que
havia no quarto, antes de começar a cochilar. Instantes depois, acordou atordoado por um barulho
esquisito.
Olhou no relógio, que marcava, precisamente, três horas da manhã.
Olhou no relógio, que marcava, precisamente, três horas da manhã.
A
única luz vinha da TV que transmitia a reprise de um velho programa de
auditório. Levantou-se da cama, confuso e pestanejando, enquanto tentava
interpretar aquele som que ele tinha certeza de que sabia o que era, mas não conseguia identificar.
Até que, após alguns segundos, resolveu o mistério: era o barulho de uma pá
cavocando a terra. Igual ao que seu tio fazia quando ele ia visitá-lo na fazenda, durante as férias de verão. Primeiro vinha aquele barulho seco e baixo da pá
sendo posicionada na terra, depois aquele barulho mais alto e molhado da bota
sendo usada para afundá-la, e por fim aquele barulho mais suave da terra
sendo expulsa.
Não
conseguindo, porém, imaginar de onde vinha o tal barulho, achou melhor esquecer e
voltar a dormir.
No
dia seguinte, acordou ainda cansado da viagem e da quebra de sono e, durante o café-da-manhã, aproveitou para socializar a experiência da
noite anterior com a senhoria, mas ela negou ter ouvido qualquer coisa.
-
“Se eu tivesse orelhas tão grandes quanto as suas, ouviria tudo!”
– pensou ele, sarcástico, referindo-se às imensas orelhas da velha mulher que
nunca deixava de estampar um sorriso no rosto.
Depois
de comer, foi até o local onde seria o congresso, que ficava há menos de uma
quadra de distância, e retornou à pensão pouco antes de anoitecer. Logo que chegou, se deparou com um policial fardado que, após uma breve apresentação, mostrou a foto de uma adolescente colegial.
-
Ela desapareceu desde ontem, por volta das seis da tarde. Morava no prédio ao lado. Você a viu?
Roger
respondeu que não, afinal, havia chegado na cidade pouco antes da
meia noite do dia anterior.
O
policial suspirou frustrado, guardou a foto, e despediu-se de todos.
Um
tanto perturbado com a notícia, pensando no que poderia ter acontecido à pobre
garota, Roger foi até seu quarto decidido a ter um sono verdadeiramente
reparador, recusando inclusive a janta.
Mas,
da mesma forma que na noite anterior, precisamente às 3 da manhã, acordou
com o barulho da pá cavando. Dessa vez, a TV estava desligada, e o completo breu de seu
quarto dava a impressão do som ser maior ainda.
- Quem cavaria um buraco a esta hora da madrugada? – murmurou, enquanto
levantava da cama.
Abriu
a porta de seu quarto, e viu que no corredor reinava um silêncio mortal, e todas as
portas dos outros quartos estavam fechadas.
O
barulho era alto e constante, como as batidas do seu coração, que por sinal
começavam a ficar cada vez mais aceleradas. Roger resolveu olhar pela janela, e
foi então que suas mãos e pés congelaram, os cabelos de sua nuca arrepiaram, a garganta
secou e a visão ficou turva.
Isso
porque a imagem através da janela não coincidia com a que ele viu
pela manhã, enquanto caminhava até o local do congresso. Jurava que em
frente à pensão havia um prédio residencial alto, cinza, com cinco ou seis
andares. Porém, o que estava vendo agora era um terreno plano e abandonado,
coberto por uma neblina densa. Neste terreno, havia apenas uma pequena casa de
madeira, que estava com a luz acesa. Uma luz amarela e forte, que podia ser
vista através das frestas da madeira trabalhada.
Roger
não conseguia enxergar ninguém lá. Porém, depois de analisar melhor a cena, avistou – nos fundos do barraco – uma pá cavocando o chão.
Não dava pra ver quem a operava, nem o que a pessoa estava escavando. Ele via apenas o movimento da pá, entrando e saindo da terra.
Não dava pra ver quem a operava, nem o que a pessoa estava escavando. Ele via apenas o movimento da pá, entrando e saindo da terra.
Como
um choque, o medo percorreu todo o seu corpo e o fez voltar correndo para a
cama, ligar a TV e forçar o sono, apesar daquele barulho infernal e do
perturbador pensamento de que ele estaria enlouquecendo. Afinal, nem aquele
terreno, nem aquele barraco, estavam lá de manhã.
Desmaiou.
Horas
depois, quando já havia clareando, Roger despertou assustado, e a primeira coisa
que fez foi olhar pela janela. De fato, ele estava certo. Da mesma forma como
surgiu repentinamente, aquele terreno tenebroso desapareceu, e lá
estava novamente o tal prédio com vários andares, como se nada tivesse
acontecido.
Durante
todo aquele dia, ele foi atormentado pela dúvida: afinal, aquilo havia sido um "sonho lúcido", ou melhor, um "pesadelo lúcido"? Nem mesmo conseguiu prestar atenção no segundo dia do
congresso, pois ficou encucado com o acontecimento extraordinário.
No
fim da tarde, ao retornar à pensão, novamente foi surpreendido pelo mesmo
policial, que lhe apresentou outra foto, dessa vez de uma mulher na casa dos 50
anos.
-
Ela desapareceu noite passada. A família simplesmente não sabe o que houve. Foi
dormir, e no dia seguinte não estava mais na cama. Morava no prédio em frente. Você a viu por aqui?
Gaguejando, devido a mistura de medo, angústia e confusão, Roger explicou ao policial que nem
saiu na noite passada, e que durante todo o dia de hoje estava presente no
congresso, e não a havia visto, desde que chegou na cidade. A dona da pensão,
gentilmente, confirmou seu relato.
O
policial agradeceu pela explicação e continuou perguntando para as outras
pessoas que ali estavam, mas sem sucesso.
Roger
caminhou a passos largos até seu quarto, fechou a porta correndo e deu três voltas na chave para se
certificar de que estava bem trancada. Imediatamente olhou pela janela, e viu
que em frente à pensão ainda estava o tal prédio cinza de cinco andares.
Pensou:
-
“Hoje preciso ficar acordado, para saber se aquilo foi mesmo um sonho lúcido”.
Sentou,
se recostou na cabeceira da cama, e começou a passar os canais da TV. Não
prestava atenção a nenhum programa, pensava apenas no que faria se o tal
terreno sinistro voltasse a aparecer.
Quando ele já estava desistindo de ficar
acordado, eis que começou a ouvir o cadavérico barulho da pá trabalhando. Uma rápida olhada no relógio confirmou que era precisamente 3 da manhã.
Gelado, levantou-se da cama e espiou pelo canto da janela. Lá, no lugar do prédio, estava de novo o tal terreno nebuloso, com o mesmo barraco de madeira no meio, com a mesma luz amarela acesa dentro e, nos fundos, a mesma pá subia e descia do chão.
Gelado, levantou-se da cama e espiou pelo canto da janela. Lá, no lugar do prédio, estava de novo o tal terreno nebuloso, com o mesmo barraco de madeira no meio, com a mesma luz amarela acesa dentro e, nos fundos, a mesma pá subia e descia do chão.
-
Definitivamente, isso não é um sonho. – murmurou – Mas, real também não pode
ser! Prédios não desaparecem do dia pra noite. Eu estou louco!
Então,
sem fazer nenhum barulho, caminhou até sua porta, e a destrancou com cuidado. Viu que o
corredor estava escuro e vazio. Andou sorrateiramente por ele, até chegar à
porta principal da pensão. Abriu-a com a destreza de um ladrão.
Lá
fora estava muito mais frio. A diferença de temperatura foi percebida tão
bruscamente, que foi como se ele tivesse mergulhado numa banheira cheia de
gelo. Suas mãos e braços tremiam e roçavam em seu casaco, na tentativa de se
aquecer um pouco mais. Com a respiração ofegante, ele decidia se continuava com a ideia de explorar realmente o tal terreno, ou
voltava para a aparente segurança de sua cama, em troca de permanecer com
aquela dúvida corroendo sua mente.
Depois
de uma breve reflexão – que pareceu durar horas – decidiu continuar com o que
começou e saiu pelo pequeno portão de madeira da pensão, ficando em pé na
calçada oposta a do sinistro terreno.
Diante
da total incoerência da situação, Roger resolveu analisar o ambiente por alguns
segundos. O céu estava totalmente preto. Não havia lua, nem estrelas. Apesar do
frio intenso, também não havia vento. Na realidade, era como se o ar estivesse
parado. Também não havia nenhuma criatura por perto. Nem mesmo cão, gato ou
esquilo. E o único barulho ouvido era mesmo o da pá, que nunca parava de cavar.
Após
fazer essas breves constatações – que o deixaram ainda mais apreensivo –
procurou, sem sucesso, um ângulo capaz de enxergar quem operava a pá. Tomou um
pouco de coragem e, usando um tom de voz não tão alto para acordar os vizinhos,
nem tão baixo para não se fazer ouvir, perguntou:
-
Tem alguém ai?
Não obteve qualquer resposta. Nem mesmo uma interrupção no barulho. Nada.
Aproximou-se então, mais ainda mais do terreno. Nesse momento ele já não sabia qual a
principal razão pela qual suas pernas tremiam, se era devido ao frio intenso ou
ao medo excruciante que sentia.
Finalmente, contudo, pisou pela primeira vez naquele solo verde escuro do terreno misterioso. Agora
estava há pouco mais de 10 metros do barraco velho, que sempre tinha uma luz
amarela acesa dentro. Nos fundos, a pá continuava cavando. Foi quando ele tomou
coragem novamente e, com uma voz bem falha, indagou:
- Você precisa de ajuda?
Nesse
momento, a luz do barraco apagou. Quando ele desviou o olhar
para ver isso, a pá parou de cavar, e o barulho sinistro deu lugar a um
silêncio ainda mais amedrontador.
-
Isso é loucura!... Eu estou louco!... Isso é loucura!... Eu estou louco! – murmurava,
congelando de frio e de medo.
De
mansinho, caminhou ao redor do barraco apagado, e foi até o local onde via a pá
cavando. Havia sim um buraco. Não muito largo, mas bem fundo. Aproximando-se
mais, constatou que não conseguia sequer ver o fundo. A pá estava
cuidadosamente amparada na parede, mas não havia nenhum sinal de alguém por
perto.
Perturbado
com tudo aquilo, saiu correndo dali. Quando já estava quase atravessando a rua,
ouviu um pequeno “click”, e ao se
virar, percebeu que a luz do barraco acendeu novamente. Depois, a porta
da frente começou a abrir, lentamente. O barulho das dobradiças ecoava como nos
velhos filmes de terror.
Só
o que se via lá dentro era um forte clarão causado pela luz amarela. Roger, hipnotizado, começou a caminhar em direção à luz. Sua vontade própria
ia abandonando gradativamente seus sentidos e movimentos. A cada passada ele
ficava mais sob o poder daquela luz forte. Por fim, entrou no barraco de madeira, e a
porta se fechou atrás dele, para nunca mais abrir.
Foram
necessários dois dias para que a dona da pensão registrasse o desaparecimento
de Roger. O mesmo policial de sempre compareceu à pensão para fazer as
perguntas de sempre. E, como sempre, nenhuma pista foi descoberta e, da mesma
forma dos desaparecimentos anteriores, o caso foi arquivado.
Porém,
apesar de ninguém ter associado isso ao desaparecimento do rapaz, um assunto se
tornou rotina na mesa do café da manhã daquela pensão durante os dois dias que
se seguiram ao seu desaparecimento. Alguns hóspedes começaram a relatar
que, apesar de não conseguirem identificar a origem, no meio da madrugada ouviam estranhos barulhos!
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12 de Outubro de 2012.
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